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TEXTOS
INSTITUCIONAL
Dramas e mitos, oposições e fronteiras, corpos e gestos compõem a exposição “Only You”, do fotógrafo Leonardo Kossoy, no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Fernando Azevedo. Formada por 145 imagens, divididas em 16 ensaios realizados em estúdio com dois atores (Gilda Nomacce e Germano Melo), "Only You" articula fotos, instalações e vídeos. "Não quero falar da relação entre homem e mulher, mas da questão binária do pensamento. Na mente, existe um modelo binário. Você só consegue pensar em algumas coisas se imaginar o oposto", afirma Kossoy, cujas “imagens idealizadas” investigam os limites da linguagem fotográfica, expandida por conceitos da literatura, das artes visuais e da psicanálise. O curador Fernando Azevedo avalia que “Only You nos questiona sobre todos aqueles momentos em que nos encontramos duplamente a sós nos rituais da vida a dois”. Mestre em filosofia e história da arte pela City University de Nova York, com especialização em pintura pelo Pratt Institute, Azevedo acrescenta: “O trabalho não tem respostas, não diz que sim nem que não, somente examina, multiplamente, fragmentariamente, em todas as direções”. Para Leonardo Kossoy, o objeto fotografado preexiste em nossos desejos. "Você fotografa o que deseja, só vê e se dá ao trabalho de enquadrar se for a imagem do seu desejo”, defende o artista, que se impregna de imagens antigas do inconsciente. Nos quadros dos pintores Caravaggio e Francis Bacon, encontrou modelos de perspectivas, de enquadramentos e de iluminação. Dessas investigações surgiu a opção por cubos e pelo fundo preto – uma “câmara obscura”. No centro de seus interesses, as diversas formas de imagem, num estudo que se estende da pintura ao cinema. Realizada entre 2011 e 2013, a série fotográfica “Only You" é seu primeiro trabalho em estúdio, com modelos nus (encaixotados ou em situações dramatizadas). "Eu procurava drama. Para realizar os ensaios eu encontrei um casal de atores que resolveram a questão da expressão cênica. Tinha que ser ator. Gosto muito de ópera, de gestos extremos", diz o fotógrafo. “Nenhum apelo ao corpo belo. Nenhum desejo de mostrar a perfeição do corpo. Tampouco nenhum projeto acerca dos corpos abjetos”, define Ana Kiffer, professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras da PUC- Rio. “Também não se poderia definir a nudez como sendo um dispositivo erótico por excelência desse trabalho. Mesmo que se possa aí encontrar tal efeito. Nenhum pornô. Ou pós-pornô”. Nos últimos anos, Leonardo Kossoy realizou as exposições “4 un-common places in Brooklyn" (2004), "Desoriente: o Eu nômade" (Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo e Rio de Janeiro - 2006/2007), "Espanhas" (Centro Cultural da Caixa do Conjunto Nacional - 2007) e a coletiva “Onde a Água Encontra a Terra” (2009/2011) – ao lado de Fernando Azevedo e Carol Armstrong -, apresentada no Masp em São Paulo, no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, na Fundação Clóvis Salgado em Belo Horizonte, no Museu Oscar Niermeyer em Curitiba e na Casa das Onze Janelas em Belém. Em 2012, a convite do curador e escultor Emanoel Araujo, integrou a exposição "A sedução de Marilyn Monroe", no Museu Afro Brasil (SP). Com “Only You”, Instituto Tomie Ohtake, apresenta suas novas investigações mentais e estéticas, nas quais "o nu é uma paráfrase da verdade”
CURADOR
Oh, Oh, Only you... Assim cantavam The Platters no hit de 1956 que, ao que parece, enfeitiçou até Elvis e iria reverberar por muitas gerações subsequentes. É sem naivité que leonardo Kossoy toma emprestado esse título em inglês para um trabalho que tem como tema os desafios e possibilidades do relacionamento a dois.
Só você parece dar sentido a este mundo. Só você faz minha escuridão brilhar.
Só você pode me encantar
do jeito que você faz
e encher meu coração de amor só por você,
somente você
Que relação pode comportar tamanha expectativa? Quem é este você? Quantos estão neste você? Será este you o Outro que amo, este ser único que justifica minha própria existência? Ou será ele a imagem especular, a projeção inconsciente de meus desejos e necessidades afetivas? Talvez nunca tenhamos sido dois mas somente um – only me. Será a intimidade do casal realmente única e privada? Ou será ela produto de uma sociedade inexoravelmente mergulhada numa neblina midiática? Canções, romances, pinturas, filmes, novelas de TV ou peças de teatro reproduzem ou normatizam os padrões e demandas de nossa existência a dois? Há cinismo ou redenção nestas tantas questões? Provavelmente ambos, na medida em que construções são muitas vezes antecipadas por demolições. Only You ajuda a abalar as estruturas de um nós amoroso excessivamente apoiado em noções de interioridade e unidade, deixando terreno aberto a se pensar o relacionamento a dois em bases mais exteriores e múltiplas. FeRnando azevedo CuRADOR O mérito maior do Only You de Kossoy, entretanto, está na inventividade e sutileza das experiências estéticas e dramáticas que estabelecem essa questão. Através de uma estratégia de fragmentação que escapa à causalidade narrativa, os grupos de Kossoy exploram os meios significantes da fotografia e vídeo para colocar o observador em posições pré-codificadas. O trabalho aponta para outros meios, outras artes. O cinema, por exemplo, é referenciado na frontalidade do movimento de câmera que o caracteriza – o panning. O espaço do teatro – tragédia ou ópera – se reflete no exagero dramático de gestos visto da perspectiva aérea dos balcões da plateia. O próprio uso do meio fotográfico – pelo enquadramento, no espaço cênico estabelecido, em suas relações extremas de luz e sombra, perspectivas envolventes, e imagens ora arrastadas ora nítidas – alude à pintura, imprimindo um quê do barroco Caravaggiano, ou até mesmo da ansiedade de Bacon. Até a nudez aqui é meio. O nu, que a tudo permeia, é o figurino de Kossoy. Como seus fundos negros indeterminados, a nudez também recusa referências de tempo e espaço. uma cena de jantar a dois, que pode lembrar Buñuel, Almodóvar ou novela de TV, é a exceção que confirma a regra. Aqui as roupas são os props que provocam um dos poucos momentos eróticos do trabalho. Como observou Ana Kiffer, a nudez em Only You escapa às suas classificações pós-modernas: não é pornô nem pós-pornô, não é idealizada, comercializada e quase nunca é erótica. Papéis femininos e masculinos complicam estereótipos e agendas, como percebeu Roberto Tejada. A nudez mais ousada em Only You, porém, está mesmo no desnudamento da noção insular de interioridade. nossas singularidades como casal, talvez venham ser muito mais plurais e exteriormente partilhadas do que estamos preparados para admitir.
CORPOS EM DESALINHO – Marcelo Coelho
Fotografias de Leonardo Kossoy mostram desencontros entre o homem e a mulher
Quem visitar o Instituto Tomie Ohtake até o dia 30 de março pode experimentar um bom susto. Digo melhor: um susto bom.
Basta entrar numa sala muito escura, no fundo de alguns corredores nada iluminados, tomada por uma espécie de som eletrônico, um bordão grave como o de um transformador elétrico sobrecarregado.
Calma. nenhum monstro ou grito súbito pega de surpresa o espectador. O susto é bom: não estamos dentro de nenhum parque temático de Halloween. uma parede inteira está ocupada por grandes fotos de corpos nus, iluminadas como na tela do computador mais nítido.
Cada imagem mostra, juntos ou distantes, os corpos de um homem e de uma mulher. Serão, talvez, uma dúzia de retratos diferentes, mas todos com o mesmo tipo de ângulo e de luz. Vemos, na verdade, detalhes de corpos: pés, canelas, panturrilhas, captados bem de perto e um pouco distorcidos.
O olhar passa de foto em foto, identificando aos poucos a diferença e a semelhança entre cada uma delas. Aí acontece o susto. O rabo do olho percebe, sem que o cérebro se dê conta inteiramente, que algo mudou naquela parede.
Uma foto (não a que estávamos olhando) começou a se mexer. Procuramos, na parede, qual foi a imagem que deu início ao movimento; mas enquanto isso outras já se mexeram também, caindo como um dominó lentíssimo de corpos até chegar nos retratos ao rés do chão. Tudo, em seguida, imobiliza-se de novo.
Susto bom, porque um movimento de arranjo e desarranjo apareceu do nada, sem aviso, conforme um comando invisível do computador. O espectador se pergunta o que está acontecendo, nada lhe explicam, e só depois de terminado o movimento é possível perceber que todo o ambiente — a escuridão, o som eletrônico — construía um suspense que, curiosamente, não punha nossos nervos em estado de tensão.
“Only you”, mostra-instalação com fotos de leonardo Kossoy, apresenta nessa sala uma espécie de balé fotográfico. O encantamento visual dessas imagens ritmadas não precisa de palavras para ser fruído.
Mas a sala do painel computadorizado corresponde ao ponto culminante de uma história que começou a ser contada bem antes na exposição. Para fazer as fotografias de “Only you”, leonardo Kossoy convidou um ator e uma atriz, nenhum dos dois especialmente notável pela beleza corporal.
Com exceção das cenas iniciais, que parecem tiradas de algum filme dos anos 1950 em technicolor, com o homem e a mulher se desentendendo e se entediando numa luxuosa mesa de jantar, todas as outras fotografias mostram o casal sem roupa nenhuma.
A exposição assume um caráter de “tema e variações”: a nudez do casal pode surgir emaciada e azul, como num quadro de El Greco. Outras vezes, um negror de Goya ameaça engolir os dois. uma parede inteira é ocupada por suas figuras miniaturizadas, quase redondinhas, reluzindo como o ouro de Rembrandt contra camadas de púrpura e ferrugem.
Juntos ou separados, os dois atores nunca se comunicam. Podem espremer-se, encaixotados num espaço mínimo: não tomam conhecimento um do outro. Podem estar lado a lado, cada qual empurrando como Sísifo as pedras invisíveis de seu próprio cotidiano, de suas próprias neuroses: os olhares não se cruzam.
Podem mover-se, em cenas filmadas; podem ter sido captados em plena dança, com o cabelo e as mãos indistintas como numa névoa; seus gestos não convergem, sequer expressam intenções de fuga ou de separação. numa absoluta igualdade de condições, no puro despojamento de seus corpos humanos, estão apenas lado a lado. Quanto mais nus, menos são capazes de se ver.
A sequência das salas se apresenta ao espectador quase como um romance, em que a vida de um casal prossegue às cegas, num clima que não é o do conflito, o do desentendimento, mas o da coexistência num labirinto sem paredes, em que ninguém se encontra.
Nem tudo está perdido, entretanto. nas últimas imagens de “Only you”, a nudez desaparece, os corpos do homem e da mulher mal se percebem. Cobre-os uma nata branca, uma pátina cremosa de tecido, uma nuvem de lençóis hialinos. Adivinhamos, mais do que vemos, dois rostos que pela primeira vez parecem felizes.
Num poema célebre, Manuel Bandeira disse que “os corpos se entendem”, mas que “as almas, não”. Sem dúvida, os últimos tempos depositaram um excesso de energias e de esperanças na apresentação do corpo. A valorização da nudez representa uma aposta correta, mas custosa, numa vida mais natural, menos reprimida, mais exposta aos outros.Leonardo Kossoy parece enfatizar o oposto disso tudo. na nudez de seus personagens, prevalece a incomunicação, o peso do convencionalismo, das prisões de cada um. A intimidade se recupera, todavia, quando constrói o espaço incorpóreo da escuridão, do recolhimento e do silêncio.